A experiência do olhar na arte
nov 20 2014 · 0 comments · Arte & Cultura ·0
Hamlet: – Você não vê nada lá?
A Rainha: – Nada mesmo; mas tudo que é, eu vejo.
(Shakespeare: Hamlet, Ato III, Cena IV?)
Valho-me da citação de Arthur C. Danto*, no texto “O mundo da arte”, para dar início a essa breve reflexão. Nesse texto, Danto ilumina a forma de como Hamlet e Sócrates trataram “a arte como um espelho anteposto à natureza” – embora, como o próprio autor diz, “respectivamente de modo elogioso e depreciativo.”**
Isso porque Sócrates, numa visão pessimista ou reducionista, se assim ousamos dizer, tinha os espelhos como reflexos daquilo que já podemos ver, assim como a arte. Enquanto que Hamlet experimentava a superfície refletora como reveladora de algo que não podemos perceber, “nossa própria face e forma”, nos dizeres de Arthur Danto.
Sendo a arte reflexo, atuando como um espelho, na visão shakespeariana ela aporta algo a mais do que simplesmente devolver uma imagem: ela revela quem vê. E vai além: revela aquilo que não é conhecido de si, por quem vê.
Por esse, e “outros motivos menos profundos que esse”, o filósofo considera a teoria de Sócrates defeituosa. Até porque, num silogismo, se Sócrates considera que a imagem espelhada de algo é uma imitação desse algo, e se arte é imitação, então imagens espelhadas seriam arte.
Esse pensamento foi usado no texto citado para defender que as teorias da arte possibilitam a sua existência, porque nos ajudam a discriminá-la do resto. Se sabemos usar a palavra arte e diferenciar o que são objetos de arte de objetos comuns, é porque existe uma teoria da arte que suporta essa certeza.
Segundo o filósofo italiano, Giorgio Agamben, a imagem não é uma substância, mas um acidente, que não se encontra no espelho como em um lugar, mas como em um sujeito.
Os filósofos medievais eram fascinados pelos espelhos, porque se intrigavam pela natureza das imagens que eles refletiam. Caracterizavam as imagens como algo insubstancial, porque não existem por si, mas mediadas por outra coisa. A imagem só existe através do outro.
Para Agamben, a natureza insubstancial da imagem desdobra uma característica essencial: ela é gerada conforme o movimento ou a presença de quem olha. Esse é o gatilho para que nos reportemos à experiência do olhar na arte.
Se seguirmos o pensamento de Shakespeare, a arte não é uma mediadora passiva, uma mera imagem refletida nos olhos da plateia. Ela traz algo que o próprio espectador não vê em si e talvez por isso se incomode, levante da cadeira, ou diga que o que vê não é arte. Ela pode ser incômoda para um olhar acostumado. É a consciência de si que se dá através de um outro, seja ele um movimento, um espelho ou um quadro.
Esse exemplo nos traz a reflexão sobre o esvaziamento da experiência do olhar, nas pessoas que veem arte, nas instituições que a expõem e nos artistas. Pensemos uma mostra, com centenas de obras de arte selecionadas, ou mesmo um museu com incontáveis corredores e andares. Esses espaços viabilizam que o público realmente se encontre refletido na arte? Seria o museu como uma impossibilidade de olhar o que está exposto, ou ainda, a impossibilidade de comunicação entre obra e espectador?
Supomos que se trata de “a presença de quem olha”, mencionada por Agamben. Aquele espaço de tempo precioso, onde eu me encontro comigo mesmo através do outro – no caso, a obra de arte.
A mesma reflexão que deu início a esse texto, remete-me à exposição “Cromática” do artista Waltercio Caldas, aberta à visitação na Casa França-Brasil, no Centro do Rio de Janeiro.
Nela, o texto da diretora da instituição – Evangelina Seilen – chama a atenção para essa noção do olhar, quando destaca a necessidade de reaprender a silenciar e distinguir o que é da ordem da informação e da ordem da percepção.
Isso quer dizer que o artista neutraliza a dimensão discursiva do seu trabalho, oferecendo lugar ao espectador. O azul e o vermelho que dominam obras inteiras, nada mais são que as cores azul e vermelha, e não meras representações simbólicas ou metafóricas. Como diz o próprio artista: “neste estado de absorção original não há separação possível entre o pensamento e a sensação. Tudo está em jogo quando se está frente a uma obra de arte.”
A respeito do excesso de informação em exposições, Francisco Régis Lopes Coutinho, no excelente texto “Museus e Comunicação – Exposições como objeto de estudo” , trata da imposição da palavra sobre o objeto, ou como o mesmo diz “a relação de dependência entre o mutismo dos utensílios e o falatório das letras.”
Segundo o autor, no processo de musealização “a palavra cerca o objeto, atribuindo-lhe existência específica, para atender a certas demandas.” Tanto na arte contemporânea quanto em lugares de memória, a imagem carece de palavras, e o ato de nomear manifesta um desejo de apropriação.
Nesse sentido, a apropriação fragmenta o objeto e a nomeação aumenta a distância entre quem vê e o objeto nomeado. Para Giorgio Agamben, a transformação da espécie – o ser cuja essência coincide com a sua revelação – em identidade é o pecado original da nossa cultura. “Só personalizamos algo se sacrificamos a sua especialidade”, diz o filósofo, e “o ser especial é delicioso, porque se oferece por excelência ao uso comum, mas não pode ser objeto de propriedade pessoal.”
Equivale a dizer que o excesso de alfabeto reduz o tempo e espaço essenciais para que as obras e objetos de arte manifestem a sua especialidade. Para que se instaure um silêncio e um tempo do olhar.
Um exemplo citado no texto de Lopes Coutinho nos interessa para ilustrar a questão: o ato que empreende Holly Golightly – a Bonequinha de Luxo de Capote – que não dá um nome ao gato vira-latas que encontra perto de um rio. A princípio, não nomear libera a protagonista de qualquer vínculo com o animal. Ela apenas não contava que a aparente independência da relação seria abalada justamente pela convivência, que “havia costurado relações mais profundas.”
Esse é o jogo de presença entre quem faz e quem olha, e que é mediado pela obra de arte. É a comunicação entre artista e espectador, ciclo esse que concretiza a noção de autoria.
Noção essa que defende a prevalência da linguagem e não de um “eu”. Essa foi uma antevisão de Mallarmé, citado por Roland Barthes, em “A morte do autor” , cuja poética consiste em suprimir o autor em prol da escrita, visando restaurar o lugar do leitor. Só assim ele estabelece relação com a obra.
Como a Rainha em Hamlet, que se oferece a si mesma para ver tudo aquilo que é possível, mesmo que não haja nada. Ou o ser especial de Agamben, cuja essência é o seu dar-se a ver, a sua revelação.
O espelho é onde descobrimos que nossa imagem não nos pertence. “Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas medievais denominavam amor.”
Talvez seja essa a proposição desse texto. O mergulho no intervalo ideal de tempo entre quem vê e o que é visto, de modo que o lapso temporal não se prolongue excessivamente a ponto de virarmos um fantasma, ou curto demais a ponto de nos tornamos desconhecidos.
Flavia Dalla Bernardina