A outra volta do parafuso
nov 21 2014 · 0 comments · Arte & Cultura ·0
de Henry James
por Flávia Dalla Bernardina
A verdade é terrível, mas qual delas? Se cada ser humano carrega uma versão particular da vida, a verdade possui quantas faces?
Antes de dar mais uma volta no parafuso do seu suspense, Henry James nos oferece uma narradora sem nome – o pouco que conhecemos dela é que era a filha mais jovem de um pároco do interior, e que guardava alguma intimidade com o rapaz a quem confiou o manuscrito de sua história – que no livro é contada por esse rapaz, quarenta anos após o ocorrido.
Na trama, a moça é contratada por um cavalheiro, para ser a governanta de seus sobrinhos órfãos, Miles e Flora, cuja guarda lhe fora conferida após a morte de seu irmão militar na Índia. Como toda responsabilidade inesperada, as crianças haviam se tornado um ônus para o então cavalheiro.
Ela aceitou a proposta de cuidar das crianças, sob a condição de nunca importuná-lo – “teria de enfrentar todos os problemas sozinha.” Bastou-lhe que o cavalheiro segurasse sua mão para que se sentisse recompensada.
Henry James nos mostra que sua narradora é uma personagem extremamente comprometida, termo constantemente repetido no texto. Comprometida com a sua verdade, e por ela vai até o fim – seja lá o que isso queira dizer. Com as visões dos fantasmas que rondam a casa; com a maldade que vê nessas imagens e na crença que eles – os fantasmas – desejam seus pupilos. Ela precisava defendê-los, e para isso, “quanto mais ela visse, menos as crianças veriam.”
Isso não a impedia de nutrir e invocar fantasias sobre o local, no tempo que chamava de “minha hora”, desejando intimamente, em seus passeios pelas alamedas, que alguém surgisse de repente, sorrisse e demonstrasse sua aprovação à ela. Pedia apenas que alguém soubesse.
Soubesse do que? De algo que só ela sabia, ou de algo que nem ela sabia sobre si e estava prestes a descobrir? De fato, algo estava prestes a aparecer. Como diz James, “no silêncio em que algo se agacha à espreita”.
Segundo a narradora, os fantasmas – antigos funcionários da propriedade – eram “horrendos porque eram humanos, tão humanos quanto encontrar sozinha, na madrugada, numa casa adormecida, um inimigo.” A diferença é que nos encontros que teve com as assombrações nada se passou, a não ser um silêncio sepulcral, que se prolongou por tempo suficiente para lhe fazer questionar se estava mesmo viva.
Há uma relação de reciprocidade – quase uma simbiose – da narradora com as aparições. Não só ela os via, mas também eles a viam e a reconheciam, como se já fossem velhos conhecidos. Havia uma intimidade nesses encontros. Aliás, ela já havia percebido que os fantasmas só estavam se ela os visse. Ela os constituía no mundo dos vivos.
Diante dessa situação extrema, a narradora se descobre sensível e intuitiva, para descortinar-se diante do horror da verdade que descobre em Bly. A verdade terrível, que a encurrala, mas que também provoca seu movimento.
As crianças são cândidas e condenadas, angelicais e perversas o bastante para que o leitor também duvide delas. Como diz a narradora, quando Miles e Flora não estavam sozinhos eram velhos, bem velhos.
Tinham uma delicadeza perigosa, impessoal e incastigável. Eram calculadamente exemplares, como se começassem do início a cada dia. Ela estava enfeitiçada – e o feitiço havia começado a surtir efeito no momento em que se sentiu recompensada com tão pouco – um mero aperto de mão.
O leitor, por sua vez, é arremessado à dúvida e levado além: questionamos se há enigma a ser desvendado. Henry James, ao mover a narradora, a cada página, em direção à sua própria natureza, conduz também a nós leitores a percorrer esse limbo que habita o âmago de cada ser. Em que acreditamos dentro de nós mesmos?
É a provação de enxergar e agir, abrir o jogo sem rodeios. Todos hesitamos diante do abismo, mas é preciso dar o salto, como nos ensinou nossa anônima protagonista. “O caminho mais reto é seguir em frente”.
Em frente e sozinhos, pois nem todos veem os detalhes da paisagem, nem os perigos de um belo sorriso – o que seria a verdade terrível ou a outra volta do parafuso da virtude humana comum.