Centro + Periferia = Aldeia
jul 20 2011 · 0 comments · Arte & Cultura ·0
Marshall McLuhan foi criador do termo “aldeia global”, ainda na década de 60, quando celular e internet eram cenas futuristas de uma odisseia no espaço. Para ele, a diminuição das barreiras geográficas pela tecnologia e o consequente aumento do potencial da comunicação minimizariam os limites de espaço e de tempo.
Acertou McLuhan em suas previsões, estamos aqui para ver e crer. De fato, as distâncias diminuíram, tornamo-nos seres excessivamente acessíveis. Entretanto, nossas subjetividades permanecem guiadas por torres de controle obscuras, subliminares. E muito embora ampliamos as possibilidades de acesso às informações – de forma até abusiva – permanecemos trancados em apartamentos que separam nacionais de estrangeiros, pretos de brancos, centro de periferia.
Em “Micropolítica – Cartografias do Desejo” (1986), Félix Guattari chamou de produção de subjetividade, aquela de natureza industrial, fabricada, modelada. São as mutações que funcionam “no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular como tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas.” (p.26)
Desabafos à parte, de 30 de Julho a 13 de Agosto, acontece em Vitória, a Aldeia SESC de Teatro e Dança, 2011. Com a diversidade da programação que movimenta por duas semanas os palcos do Centro Cultural Carmélia de Souza, do Teatro Carlos Gomes, de praças, ruas e universidades, o Sesc prova que vem subvertendo essa noção maniqueísta nas artes cênicas.
A Aldeia é um projeto do SESC de âmbito nacional, que contempla a mostra local de artes cênicas. São realizadas 32 aldeias anuais no Brasil, e este ano, traz ao Estado ambos os segmentos das artes cênicas reunidos num único evento.
Além das apresentações de companhias locais e convidadas, o evento é visitado pelo Palco Giratório, um projeto que viabiliza a circulação de espetáculos produzidos por grupos e companhias independentes. Como definido pelo próprio Sesc, o palco giratório “tem como filosofia a abertura de espaços para as experiências cênicas que trilham as vias contrárias ao senso-comum, estimulando e ampliando a educação dos sentidos de artistas e espectadores.”
A diversidade dos grupos e suas linguagens peculiares torna a programação da Aldeia Sesc ainda mais rica. Além disso, as reflexões cênicas, que acontecem sempre após os espetáculos, permitem a interação entre artistas e plateia, e oportunizam o diálogo sobre os processos criativos de cada companhia. As análises são feitas por uma comissão de especialistas de cada área, e são seguidas dos debates com o público, formado por artistas, estudantes e interessados.
A Aldeia também possibilita que companhias de teatro e dança que atuam fora do eixo Rio-São Paulo, sejam vistos e reconhecidos. E mais: que haja efetiva troca, que estas deixem seus registros e absorvam os nossos também. Tanto é que nesta edição veremos trabalhos de companhias de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Sul, além dos grupos locais. Na verdade, mais que sua procedência, o que importa é a consistência do trabalho, sua coerência, qualidade, proposta e processo criativo.
Nessas premissas, o multicultural aliado ao transdisciplinar proporciona a troca de informações que geram percepções multissensoriais. Por isso, é necessário investir em mutações no campo da subjetividade, para que venha à tona o singular, como proposto por Guattari.
Se retomarmos como base o conceito de Guattari sobre a arte, como “um fluxo a se combinar com outros”, atestaremos que o campo da arte passa por singularidades de diversos tipos e procedências. São as ‘trincheiras da arte’, mencionadas pelo pensador, o lugar onde sou contagiado pelo processo de criação quando sou chamado a criar a partir da obra, e não a dispor dela como uma mera informação.
Mesmo porque, se considerarmos o conceito de Gilles Deleuze sobre informação, esta é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam sobre algo, na verdade, nos dizem o que julgam que devemos crer.
Essa postura – dispor da obra como uma informação – seria uma rasteira às fontes de criação, disponíveis a todos e acessadas por alguns. Seria negar o fluxo criativo infinito, que nos torna potenciais co-criadores. Logo, na interação com a obra de arte é essencial que estabeleçamos ligações que habitem fora das identidades determinadas, as chamadas ‘ligações deleuzianas’.
Se tomarmos como base o pensamento de Deleuze, não escrevemos sobre uma tábua em branco, estamos sempre começando do meio. E somos constantemente passíveis de mudança pelas novas ligações que se estabelecem. Vivenciar esse lugar determinaria que não somos de onde viemos ou o que fazemos, não temos cor, credo ou raça. Quando alcançarmos esse degrau, e somente nele, poderemos, enfim, afirmar que habitamos uma aldeia.
Programação completa em: http://culturasesc-es.blogspot.com/
Flávia Dalla Bernardina
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