O artista colecionador
nov 21 2014 · 0 comments · Arte & Cultura, Colecionismo ·0
É inegável que existe um paradoxo a ser desvendado nas atuações corriqueiras do cotidiano contemporâneo: o excesso de conexões em banda larga e a completa desconexão de olhares e ideias. Quando o percurso se dá por vias largas que tangenciam outros saberes não alocados em caixas disciplinares, mas permeado por experiências e coincidências, alguns caminhos felizmente se entrelaçam.
E foi no ponto matemático da interseção que seu deu nosso encontro: Neyder Fernando Lima enquanto artista e colecionador, movido pela intuição curiosa, pela necessidade de tatear por territórios diversos como a literatura, a mitologia, a psicanálise e as artes visuais e Flávia Dalla Bernardina, bailarina, que sempre dançou suas angústias através da escrita, que se enveredou na academia jurídica, advogando e refletindo os direitos intelectuais e culturais e se especializou em artes visuais.
Lemos juntos muitos textos, conversamos, indagamos incessantemente, buscamos decifrar algumas questões – muitas sem êxito. Ao nosso ver, tentativas de compartilhar interesses em comum, de enxergar a humanidade no outro e em nós mesmos a cada gole de café, a cada rabisco de caneta na página lida. Sem conhecimento prévio, estaríamos cumprindo o que alguns filósofos defendem como o projeto político para a arte: a humanização de esferas, atividades e espaços da rotina que estão destituídos de arte.
É nesse sentido que o ato de colecionar alcança outras proporções, pois sendo uma escolha é também um modo de se posicionar na vida. A preferência pela arte contemporânea define a verdadeira compulsão do colecionador: a de aprender e apreender o aqui e agora manifestados nas obras que adquire. Obras que se deixam ver, revelando também o colecionador na medida em que convivem.
O colecionismo não foi (e não é) uma rota de fuga, mas um movimento avante, de um artista que permanece em busca, ainda que seja para dar sentido a um vazio incontornável. Neyder está nas obras e as obras estão nele. Irremediavelmente.
Sua referência como artista plástico antes mesmo de se tornar colecionador evidencia outra questão da contemporaneidade: a necessidade de contornar o indizível, aquilo que até pode ser nomeado, mas passa ao largo de um discurso definitório. É nesse sentido que vemos o entrelaçamento de atuações na dita pós-modernidade, onde o artista é colecionador, o marchand é curador, o curador é crítico, o crítico é colecionador, e assim segue, em inúmeras possibilidades.
A construção do acervo ao longo de mais de 20 anos demonstra a necessidade do colecionador em substantivar seu acervo, desativando qualquer possibilidade de adjetivá-lo como investimento ou decoração. A escolha é o ato que define, sem por isso limitar, o encontro do colecionador com a obra.
Nenhuma escolha é gratuita ou sugestionada e sempre pressupõe a perda de algo. Essas perdas, as obras que foram deixadas para trás, também cumprem um papel na coleção. Numa analogia à frase do fotógrafo e cineasta alemão Wim Wenders: “O verdadeiro ato de enquadrar é excluir algo.”
Pertinente é a questão colocada pelos colecionadores Mônica e George Kornis, no texto “No escolho da quantidade a quantidade da escolha: o olho”:
“Qual o papel da coleção? (…) qual o sentido de sistematicamente localizar, adquirir, classificar, tratar, reunir e conservar imagens dispersas? Colecionar esgota-se na compulsão ou vai mais além? Colecionar é necessariamente sinônimo de riqueza material, avareza, narcisismo e outros atributos não menos perversos?”
Essa pergunta é imediatamente desmontada, quando se reconhece que uma coleção é sempre dinâmica, tem o potencial de transformar e acima de tudo é aprendizado.
Como bem ressalta o casal Kornis, o ato de colecionar está distante de qualquer identificação com o estereótipo do colecionador – uma pessoa hermética, solitária e estranha, caracterizada como um simples acumulador.
Esse seria a perversão do consumo, que privilegia a mera aquisição como acumulação, descarte e destruição da coisa. Nessa versão não há aprendizado, dinamismo, muito menos transformação, mas tão somente a apropriação que separa a coisa e a eleva para uma outra esfera distante dos homens.
O colecionador deve ser aquele que destitui a obra da sua instância separada, inalcançável, restituindo-a ao convívio humano, por direito. É aquele que a todo instante ventila e oxigena não somente seu acervo, mas também seu olhar, conferindo-lhe tantos outros usos e permitindo que a potência da obra se revele.
Tomamos emprestada a frase final do texto do casal Kornis como forma de manifestar a potência do colecionismo, a mesma que move Neyder Fernando Lima em direção à próxima obra: “Colecionar pode ser a rejeição prazeirosa do estereótipo. Colecionar pode ser a liberdade, a possibilidade do impossível”.
Neyder Fernando Lima e Flávia Dalla Bernardina